Autor de 12 livros, o economista avalia o momento que estamos vivendo: ”Uma das épocas mais sombrias da existência da nação brasileira"
“O Brasil tem uma oportunidade talvez única de reconhecer a gravidade do abismo social e da desigualdade que nos envergonha como sociedade”, diz o economista e escritor mineiro Eduardo Giannetti. Autor de 12 livros, ele conquistou um público fora dos círculos acadêmicos e tem feito uma contribuição importante ao pensamento brasileiro ao tratar, além da economia, da ética, da felicidade e da nossa identidade. Formado pela USP, ele também é Phd em Economia pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Giannetti lecionou nessas duas universidades e também no Insper, além de ter sido o conselheiro e responsável pela elaboração do plano econômico de Marina Silva em suas candidaturas à presidência.
Duas vezes premiado com o Jabuti – pelos livros Vícios privados, benefícios públicos? e As partes e o todo – ele se prepara para lançar mais uma obra, o Anel de Giges. Em conversa com Paulo Lima, o economista fala sobre coronavírus, inveja, ética, Paulo Guedes e Bolsonaro. “Nós estamos vivendo uma das épocas mais sombrias da existência da nação brasileira”, diz.
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Em Trópicos Utópicos, livro publicado em 2016, você fala da importância do dinheiro para a maioria dos ricos como instrumento para gerar inveja e exibicionismo. Hoje o Instagram é uma ferramenta na qual você consegue se fazer invejado através de fotos de situações que supostamente são especiais e que o outro não tem acesso. O quanto é importante para as pessoas, mais do que a fruição, a exibição do dinheiro? Que representação de poder é essa? A melhor colocação que eu conheço sobre essa questão é de um filósofo francês do século XVII chamado Nicolas Malebranche. Ele fala que a principal pulsão da alma humana é o desejo de ocupar um lugar de honra na mente dos nossos semelhantes. Só que isso pode se dar de muitas maneiras: na política, na arte, pela beleza física e também pelo sucesso financeiro, que é a moeda corrente do nosso mundo, especialmente no padrão cultural norte-americano. Essa pulsão é muito forte na psicologia do animal humano. Desejamos ser queridos, respeitados, admirados pelos demais. E não vejo problema ético nessa pulsão. O problema é o modo como ela se manifesta, e se a maneira como ela se manifesta é legítima ou espúria. Eu não acho a métrica monetária do sucesso no mercado alguma coisa bela, ou alguma coisa eticamente boa como expressão e como realização desse desejo de ser respeitado, estimado e gostado pelos demais, mas é a dominante no mundo em que nós vivemos. Deixe-me dar um exemplo bem concreto de economista: um cidadão americano com a renda mediana está exatamente no meio da distribuição de renda. Metade da população está abaixo dele, metade da população está acima. Ele está entre os 5% mais ricos da população mundial, porque os Estados Unidos são um país com uma alta renda per capita, portanto o mediano americano está na elite da elite da população mundial. Aí vem a questão: aos seus próprios olhos e aos olhos dos seus concidadãos norte-americanos ele é um loser, um derrotado, um fracassado – e, no entanto, ele está entre os 5% mais ricos do planeta!
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Tem uma categoria muito útil para pensar esse assunto que eu uso no livro Felicidade, que é a categoria dos bens posicionais. Se eu tomo um copo de leite todo dia de manhã, isso me traz uma satisfação que independe do que o resto das pessoas está fazendo. Agora suponha que eu sou um jovem começando a vida, muito ambicioso. Eu vou para o mercado financeiro e tenho como grande troféu de minha conquista comprar uma BMW último tipo. Eu vou lá, ralo 15 horas por dia no mercado financeiro, conquisto honestamente o dinheiro para comprar minha BMW. As meninas passam a ver um brilho no meu olhar que eu não tinha, todo mundo passa a me olhar de uma maneira bem respeitosa quando eu paro num restaurante, quando eu saio todo mundo olha para mim. Eu estou feliz da vida, vou pra casa, durmo e, quando acordo na manhã no dia seguinte, aconteceu uma coisa estranha: todos os carros da cidade foram trocados por BMWs iguais a minha. Será que esse bem continua tendo o poder de fascinação que ele tinha quando era um privilégio muito restrito e quase exclusivo de pouquíssimos? Acabou, aquele carro perdeu a sua condição de bem posicional. A medida que a sociedade se torna mais afluente, mais próspera, nós caminhamos para uma situação em que as pessoas passam a competir por bens posicionais. Pode ser um tênis de marca, uma casa na praia, uma roupa de grife ou um carro. Nos mais ricos pode ser um iate, um jatinho, é infinito. Essa escassez não tem solução, ela vai estar sempre sendo recriada. O mercado vai criando novas oportunidades para você se diferenciar e ocupar um lugar de honra na mente dos seus semelhantes por ter acesso a bens que os outros não têm, e que acabam invejando profundamente os que têm. Essa é a lógica que preside boa parte do sistema econômico hoje: a competição por bens posicionais, poder sinalizar socialmente que você é um vitorioso nesse sentido. Eu não estou defendendo isso, estou descrevendo. Porque nós temos que entender se a gente quer se libertar disso. Não me parece um caminho muito bom, ainda por cima quando surgem restrições e ameaças impostas até pela natureza. Se todos os chineses e os indianos quiserem consumir como um norte-americano, não vai dar. Temos que encontrar outros valores que permitam a realização humana e o reconhecimento dos demais – e que não sejam esses valores na métrica norte-americana do sucesso.
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Entre muitas coisas, essa pandemia nos aproximou da morte. O vírus colocou a clareza da nossa transitoriedade, da impermanência, como dizem os budistas. Coisa que as pessoas, nessa sociedade que você acaba de descrever, fingem que não acontecerá com elas. Será que a partir dessa tragédia existe alguma chance de haver uma revisão desses valores? O meu desejo e a minha esperança é que essa pandemia produza amadurecimento ético. Um país como o Brasil tem uma oportunidade talvez única de reconhecer a gravidade do abismo social e da desigualdade que nos envergonha como sociedade. Mas, francamente, olhando para o passado da nossa história como humanidade, o raciocínio me leva a crer que o impacto é muito temporário, e as coisas voltam a ser muito parecidas com o que eram antes. Nós tivemos no século XX uma epidemia que foi muito mais devastadora do que a de Covid-19, que foi a Gripe Espanhola, que matou mais de 50 milhões de pessoas. Nós passamos por duas guerras mundiais. Nós passamos por bombas atômicas. Esses acontecimentos provocam mudanças, mas, assim que as coisas se normalizam, elas tendem a voltar ao equilíbrio anterior. A memória é muito curta. Vou fazer um prognóstico arriscado aqui: daqui a cinco anos a memória de tudo isso que nós estamos vivendo vai ser muito superficial.
[IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2020/09/5f5bd4844af2c/eduardo-giannetti-economista-escritor-tripfm-m3.jpg; CREDITS=Renato Parada; LEGEND=Para o economista e escritor Eduardo Giannetti, as redes sociais são uma cracolândia digital]
O que você descreve me faz questionar se o ser humano deu certo. Uma coisa que pode provocar uma mudança, pelo bem ou pelo mal, é o limite que é dado pela natureza. Os sinais de que isso não vai poder continuar por muito tempo. Eventos climáticos extremos. É como uma doença, uma realidade que se impõe e obriga a mudança. Eu acho que a nossa responsabilidade é tentar o aprendizado de modo a evitar a dor, mas, de um modo geral, o aprendizado se dá pela experiência da dor e da ameaça.
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O ambiente digital se tornou palco de muitos debates contemporâneos. Você, entretanto, escolheu se manter fora das redes sociais. Por quê? Foi uma opção que sempre tomei. Gosto do contato humano, pessoal, direto, e acho que essas coisas me desviam, me distraem e me fragmentam. A minha experiência de plenitude, quando eu me sinto melhor, mais integrado, mais criativo, mais capaz de chegar à fronteira do que de melhor eu posso ser, é quando eu vou para Tiradentes, em Minas Gerais, pego o meu celular, coloco dentro da maleta, a maleta dentro do armário, fecho o armário e guardo a chave. Neste momento não leio jornal, não ouço rádio, não vejo televisão. Tenho os meus cadernos, livros e tenho o meu projeto, e passo a viver por conta disso. Depois de uns 40 dias eu estou querendo ver amigos, estou querendo beber, sair, me divertir. Mas esses 40 dias em que estou nesse regime justificam muito de tudo o que eu faço, porque nesse momento são só coisas que partem de mim e dos projetos que eu vou me sentir em dívida com a vida se eu não puder realizar. Essas redes sociais todas eu chamo de "cracolândia digital". Acho que a vida é muito valiosa para se perder nesses simulacros de fantasias, de superioridade e de exibicionismo. Não me interessa esse mundo, perda de tempo. Eu sinto um enorme alívio de não estar ali.
Questionado se ainda poderemos salvar o planeta, o líder indígena Ailton Krenak em uma entrevista à Trip respondeu: "Não tem a menor chance de a gente salvar o planeta. Talvez tenha alguma chance de o planeta nos salvar." Se continuarmos explorando o planeta da forma que estamos, é possível que a natureza tire a espécie humana de jogo. Você acha que o coronavírus é uma amostra disso? O editorial da Scientific American de junho deste ano fala da relação entre doenças infecciosas, como as causadas pela família dos coronavírus, e desmatamento. O vínculo não é uma coisa mística, é concreta. A destruição das florestas no sul da China está restringindo o espaço de vida de animais selvagens. Eles estão se contaminando mais uns aos outros, especialmente morcegos que vivem nas cavernas no sul da China. A origem do SARS-Cov-2 não é o organismo humano, ele ocorre em outra espécie e passa por várias espécies até chegar ao ser humano. Há uma prática chinesa de comércio de animais selvagens, e foi num desses mercados em Wuhan que começou a pandemia. A diferença é que agora o que era um acontecimento restrito no local, dada a globalização, se torna quase que instantaneamente uma ocorrência planetária. Isso é um aspecto de fragilidade da globalização que ninguém tinha pensado muito, tanto na questão epidemiológica, que são pessoas se movimentando, como estritamente econômica, que são as cadeias de produção globais. Uma parada em Wuhan para também empresas do mundo inteiro, que dependem de insumos e produtos que são parte da sua cadeia produtiva. Isso que o Krenak falou tem uma realidade que é muito passível de análise empírica científica.
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Quando as pessoas estavam decidindo em quem votar nas últimas eleições presidenciais pesou muito o fato de ter um sujeito ligado ao mercado como o Paulo Guedes na chapa de Jair Bolsonaro. Muita gente votou no Bolsonaro por confiar nesse tipo de profissional, um sujeito liberal de mercado, que representa essa coisa do banqueiro, da meritocracia, dessa lógica de gerenciar o mundo. Na sua visão, como tem sido a performance do Paulo Guedes na gestão da economia nacional? Agora sobre o Paulo Guedes, a primeira coisa que me ocorreu quando eu vi que ele embarcou nessa aventura foi o seguinte: os economistas podem ser mais ingênuos sobre a política do que os políticos são ingênuos sobre a economia. Ele não sabia a aventura na qual estava se metendo. É uma pessoa ambiciosa, se ressentia muito de não ter feito na sua trajetória um impacto na política econômica brasileira como a da turma da PUC do Rio que fez o Plano Real. E ele percebeu no Bolsonaro uma chance de cavalgar um projeto político que lhe permitisse mostrar do que ele era capaz. Só que ele acabou fazendo um papel bastante patético, como o Sérgio Moro, que foi muito ingênuo de aceitar e de acreditar nesse embuste. Durante 30 anos como deputado federal no Congresso, Bolsonaro foi corporativista. Quando Fernando Henrique privatizou, ele disse que ele tinha que ser fuzilado, e a poucos meses da eleição ele vira um neoliberal de Chicago. Quem pode acreditar nisso? Como deputado, Bolsonaro apresentou dois projetos de lei, e um deles foi a aprovação da pílula do câncer. E o pior é que ele acredita na pílula do câncer, como ele acredita na cloroquina. O Brasil elegeu alguém que acredita em pílula do câncer, e o Sérgio Moro e o Paulo Guedes acreditaram nisso. Se deram mal. O fenômeno Collor não foi algo muito diferente disso: em nome de barrar o Lula, valia qualquer coisa para um grupo enorme de brasileiros. Agora foi a mesma coisa, e tem gente oportunista que embarca nisso. É um infortúnio para o Brasil ter essa sobreposição de pandemia e Bolsonaro. Nós estamos vivendo uma das épocas mais sombrias da existência da nação brasileira, na minha opinião.
Você está prestes a lançar um livro, o Anel de Giges. Sobre o que ele trata? É um livro sobre ética. Estou ruminando essa criação há pelo menos 40 anos. Ela nasce de uma fábula que o irmão do Platão conta no Livro II d'A República. Num reino oriental da Lídia, que é onde hoje está a Turquia, existia um pastor humilde, um homem comum que estava pastoreando o seu rebanho, quando de repente ocorre um terremoto. A terra se abre e ele curioso vai lá olhar. Desce pela fenda e lá encontra um cavalo de bronze oco. Dentro do cavalo há um cadáver nu com um anel no dedo. O Giges, que é o pastor, retira o anel, volta para a superfície e continua o seu trabalho de pastoreio. Um dia ele vai para uma reunião, uma assembleia de pastores lídios e começa a brincar com o anel no dedo. Ele percebe que quando ele gira o engaste do anel para dentro as pessoas começam a falar dele como se ele não estivesse lá: ele fica invisível. Quando ele gira o anel para posição normal ele volta a ficar visível. O que Giges, o humilde pastor, faz quando descobre o anel com esse poder? Ele se faz eleger como representante dos pastores para prestar contas ao rei e vai para a capital, para a corte. Lá ele seduz a rainha e, com a cumplicidade dela, assassina o rei e se torna o novo soberano da Lídia, interrompendo uma dinastia de 55 gerações. Isso gera uma guerra civil, porque foi um golpe, ele usurpou o trono. Para resolver o conflito, resolvem consultar o Oráculo em Delfos, o oráculo de Apolo. E o oráculo, para quem Giges está mandando presentes valiosíssimo de ouro e prata, decide que o legítimo rei da Lídia é Giges. E aí ele se consolida. Mas o Oráculo diz mais uma coisa: "A punição pelo crime do regicídio virá na quinta geração dos seus descendentes". A culpa de uma geração era herdada pelas gerações seguintes. E, de fato, essa punição vem e se abate sobre o rei Creso, que era o pentaneto do Giges. Essa é a fábula. Qual é a pegada filosófica? Por que importa isso n'A República? Porque o Glauco, que é o irmão de Platão, conta essa fábula e desafia o Sócrates: "Sócrates, se eu tenho o anel de Giges, por que eu seria ético? Eu posso ter tudo o que eu quiser mantendo a minha reputação, já que sou inimputável ao ficar invisível e posso alcançar uma vida muito mais plena, sem nenhum tipo de compromisso com a ética". O Sócrates passa o resto d'A República tentando mostrar que vale a pena ser ético mesmo que você tenha a certeza da impunidade, porque a melhor vida é a vida ética.
Há um paralelo com o foro privilegiado? Cada político brasileiro acha que ganha um anel de Giges quando entra no Congresso, praticamente isso. O Sócrates argumenta que, independentemente das consequências benéficas de parecer ético, ser ético nos dá a plenitude e a melhor vida ao nosso alcance. Isso me interessa como o problema intelectual, porque dá para pensar a história da ética, como é que as diferentes correntes de pensamento lidam com essa situação da certeza da impunidade. Mas, mais importante, eu acho que dá para colocar isso como questão pessoal: o que é que cada um de nós faria se tivesse no dedo o anel de Giges? Porque isso revela o que habita o fundo da nossa alma. Poder ser aquilo que se é, independentemente da punição legal e da censura moral.
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