A cantora e sambista viu o alcance de sua voz se multiplicar na quarentena e conta como continua enfrentando o racismo que tanto a silenciou
Quando subiu no palco pela primeira vez, Teresa Cristina sentiu muita vergonha. “Achava que em algum momento alguém ia chegar e falar: ‘sai daí, você não pertence a esse lugar’, conta. “O racismo foi me colocando num lugar de silêncio. Eu demorei muito a perceber isso”. Ela experimentou a mesma sensação quando ligou a câmera para fazer uma live no Instagram em meados de março, mas outra vez não desistiu. Sem muitas pretensões, cantando e contando histórias na madrugada, Teresa Cristina viu seus fãs e seu sucesso se multiplicarem.
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Apelidada de rainha das lives, a sambista já soma mais de 600 horas de transmissão desde o início da quarentena. Ao longo das horas que fica on-line todas as noites de sua casa, no Rio de Janeiro, ela divide a tela com convidados como Xuxa, Lula, Alcione, Caetano Veloso, Gal Costa e Chico Buarque. Aos 52 anos, com mais de duas décadas de carreira e uma dezena de discos gravados, entre eles tributos aos sambistas Cartola e Noel Rosa, Teresa nunca havia conquistado tamanho alcance e reconhecimento – seu primeiro patrocínio foi em uma das lives que transmitiu nos últimos meses. O que isso vai trazer no futuro, ela ainda não sabe. "Espero que, com o fim da pandemia, eu consiga realmente abrir os meus caminhos, aumentar o meu público", diz. "Por enquanto o aumento foi do número de pessoas que me seguem". Recentemente, a exposição a colocou no alvo de grupos de ódio na internet, que fizeram com que a carioca anunciasse uma pausa em suas lives depois de sucessivos ataques à sua conta. Mas ninguém pode parar Teresa Cristina.
A seguir, a cantora conversa com a Trip sobre sucesso, música, racismo e pandemia.
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Trip. Você vive na mesma casa que a sua mãe, Dona Hilda. O que ela está achando dessa atividade intensa que você está tendo com as lives, com sua casa virando palco noite após noite?
Teresa Cristina. Eu comecei as lives pensando nela. Eu estava muito preocupada com sua saúde mental porque eu observava ela assistindo ao noticiário e ficando muito abalada, triste e calada. Fiquei preocupada mesmo, sabe? Aí eu falei: vou inventar alguma coisa para distrair minha mãe. Então a gente começou a fazer uma live no YouTube chamada "Jovens Lives de Domingo" para ela cantar as músicas que gosta, repertório da Jovem Guarda, Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Nelson Golçalves. E aí ela começou a se animar, a separar músicas, a cantar comigo aos domingos. Infelizmente o Brasil é um dos piores lugares para se estar durante essa pandemia. Temos um presidente completamente inconsequente, com atitudes que vão contra a orientação da OMS. As mortes foram crescendo e eu fiquei muito preocupada com o que ia acontecer com a minha família, e aí eu comecei a fazer live também. Quando eu vi eu estava fazendo live todo dia. Para fazer a live eu preciso fazer uma pesquisa, me programar, e isso toma um certo tempo que me faz muito bem. É muito melhor, em vez de ler as atitudes criminosas do ministro do Meio Ambiente ou o que foi que o Bolsonaro fez para encobrir os crimes do filho dele, eu ficar aprendendo sobre a obra do Gilberto Gil, do Caetano Veloso, do Chico Buarque, do Cazuza, do Lulu Santos. Faço pesquisa sobre a negritude, sobre ancestralidade e esse tempo que eu gasto é um tempo que eu estou deixando de ficar triste, de ficar preocupada, de pensar em coisas que não me fazem bem. De algumas notícias eu não consigo escapar, mas a live pra mim tem sido um alento – e que bom que para muitas pessoas também. Um lugar de acolhimento, em que a gente se diverte e fala de coisas belas, da produção cultural do país que não para. Valorizar o trabalho desses artistas que já fizeram muito pelo Brasil, isso que tem ocupado o meu tempo.
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Você acabou construindo uma plataforma de celebração num momento tão doído, tão bagunçado. Nesse período rolou uma empolgação geral com a coisa da live, mas a impressão é que ao longo do tempo o pessoal começou a ver que dava trabalho e que não é tão fácil assim. Mas você de certa forma descobriu um outro talento, uma outra habilidade, que é a de conversar, de criar um clima, de comunicar. Como é esse aspecto profissional, de descobrir a capacidade de ser uma comunicadora nesse nível, diferente de subir no palco e cantar? Eu acho que eu me reencontrei, de certa forma, porque desde a minha infância já tinha o ímpeto de ir à frente da turma e cantar, imitar a Fafá de Belém. Mas eu sempre sofri muito racismo no colégio e essas injúrias raciais foram aos poucos modificando o meu jeito, eu fui me tornando uma pessoa tímida, retraída, introspectiva. E eu não era assim criança. Sempre fui bem comunicativa, gostava de fazer graça, de contar piada. O racismo foi me colocando num lugar de silêncio. Eu demorei muito a perceber isso. Há pouco tempo que eu tive esse entendimento, que caiu a ficha de que essa timidez que eu me forcei não estava sendo eu, eu não estava feliz com isso. Quando eu subi no palco pela primeira vez eu tinha muita vergonha de mim, achava que em algum momento alguém ia chegar e falar: "Sai daí, você não pertence a esse lugar". E a live tem uma coisa interessante porque eu me vejo o tempo todo, o que aparece na tela do meu celular sou eu falando comigo mesma. E de uma certa forma eu fui jogando o meu conteúdo cultural, o que eu ouço desde que comecei a ouvir música. Fui tentando criar uma comunicação com as pessoas, tentando passar para elas o que eu aprendi, as músicas que eu sei cantar, as que me emocionam. Tem músicas que eu nem sei cantar direito, mas eu gosto de lembrar, de falar do artista. Às vezes a própria canção tem alguma história por trás, ou alguma ligação comigo, uma passagem da minha vida em que aquela canção foi importante. Tudo isso vira material, e as pessoas também vão trocando informação, sempre vão aparecendo assuntos. Eu tenho conhecido e encontrado muita gente talentosa no Brasil inteiro. Muitas mulheres talentosas, compositoras e pessoas que não têm espaço na mídia, mas que têm já um trabalho de 10, 20 anos de carreira e que estão aí invisíveis e precisam de um lugar para mostrar o seu trabalho ou de alguém que os ouça para ter algum juízo de valor sobre o que estão fazendo. Tudo isso eu fui aprendendo com a live. Eu não tinha um modelo estabelecido, fui fazendo e aprendendo. E uma coisa que eu descobri é que isso tem muito a ver comigo. Quando eu comecei a cantar na Lapa eu não era cantora, eu estava pesquisando a obra do Candeia e de repente me veio esse convite para cantar no Bar Semente. E eu fui meio que aprendendo ao vivo. Então a impressão que eu tenho é que já é a segunda vez que eu faço isso na minha vida. Eu chego no lugar que eu não sei se eu pertenço, não sei se eu sei fazer e posso não ter tanto talento, mas acho que tenho a coragem de encarar músicas que são importantes para mim, que talvez eu não saiba cantá-las da maneira correta, com todas as melodias no lugar, mas só de falar da canção eu acho que vale a pena.
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Você já está com 20 anos de carreira e foi patrocinada pela primeira vez só agora, por uma marca de cerveja. Por que depois de tantos anos abrindo shows do Caetano, turnês internacionais, você não estava inserida de forma mais pesada nessa zona de mercado? São muitas cantoras negras que também não têm espaço ou patrocínio, isso é uma coisa recorrente no Brasil. Estou acompanhando no meu Instagram pessoas negras que estão colocando fotos de pessoas brancas em seus perfis e, quando elas fazem isso, o perfil delas tem mais acesso, mais pessoas curtindo, mais comentários, o perfil fica mais movimentado do que com a cara preta delas. As pessoas estão fazendo esse teste. Isso não é novidade, o racismo no Brasil não é discutido. A gente hoje tem o entendimento de que, além de não ser racista, precisamos ser antirracistas, combater esse veneno social que existe desde que o Brasil é Brasil. Desde que foi abolida a escravatura e as pessoas foram colocadas na rua sem nada, sem nenhum tipo de assistência, desde que você vê pessoas criticando a política de cotas, porque a corrida da vida é desigual, muito desigual.
Me lembrei de duas figuras muito importantes na música brasileira: o Tim Maia e o Simonal, para lembrar de dois artistas negros que tiveram um êxito muito grande. Você acha que o preconceito racial piorou no Brasil dos anos 60 e 70, quando esses artistas conseguiram chegar no topo da carreira e fazer muito dinheiro, para cá? Eu não sei se piorou. Acho que talvez a gente passe a ter uma noção de que o racismo aumentou, mas será que ele aumentou ou ele só está sendo filmado, documentado? Porque nessa época do Tim Maia e do Wilson Simonal esse pensamento racista já existia, talvez até com muito mais força, mas não era documentado, não era denunciado, não era nem crime. Hoje eu vejo gente reclamando que não pode mais fazer piada com preto, como se fosse uma coisa muito agradável para quem é negro ouvir esse tipo de piada. E as pessoas usam isso como exemplo de que o mundo encaretou. O mundo está careta, reacionário e conservador não porque você deixou de fazer piada com gente preta, é por outros motivos que a gente está vendo aí. E eu percebo também que uma pessoa negra, quando faz muito sucesso, se por acaso ela comete algum tipo de deslize, a sociedade tem a memória mais forte para lembrar e cobrar aquele erro. Quando é o caso de uma pessoa branca, ela faz um vídeo pedindo desculpas e foi, é aceito. E como é uma coisa que a gente não discute, fica assim, meio dado à interpretação. A gente tem uma lei que diz que o racismo é crime, mas ao mesmo tempo a própria sociedade racista coloca o racismo numa conversa de interpretação, "não foi bem assim, você entendeu errado". Isso irrita muito, magoa muito. Isso mata muita gente.
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No começo de maio você deu uma entrevista para nós e falou que o seu sonho era ver o Chico Buarque entrar na sua live. E você cravou: "Acho que se ele entra eu morro do coração". Um tempo depois ele fez uma participação na sua live. Como foi? Eu vou dizer que eu só não morri do coração porque já sabia que ele ia entrar. Era aniversário de 81 anos do Antônio Pitanga, que é um grande artista, uma pessoa muito importante para o Brasil. Eu sou amiga dele e da Camila, sua filha, e aí eu falei para ela: "Seu pai vai fazer aniversário no meio da pandemia e está aí lúcido, produzindo, sendo premiado, fazendo coisas. Vou fazer uma festa de aniversário para ele na minha live e convidar seus amigos para participarem e darem os parabéns". Os amigos eram: Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Elisa Lucinda. Então acabei criando coragem e liguei para a companheira do Chico, a Carol Proner. Ela me colocou em contato com ele e eu o convidei para estar ali para dar os parabéns. O Chico é um dos artistas que eu conheço desde muito nova, seis, sete anos de idade. Aquele álbum dele, Construção, eu ouvia inteiro, e é uma pessoa que eu tenho uma admiração sem tamanho, um brasileiro muito importante. Eu acho que vocês me deram sorte.
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Em 2018 a gente fez uma matéria sobre a as dificuldades das mulheres no samba. Elas afirmavam que não tinham espaço para tocar nas rodas de samba, que era um negócio bem fechado para elas. É assim ainda? Para as mulheres instrumentistas sim. Só tem um pequeno detalhe: o samba é machista como o Brasil é, mas o samba não é hipócrita, o machismo do samba a gente vê, e por ver, por enxergar a gente consegue lutar contra. É muito pior quando a gente luta por uma coisa que as pessoas querem tornar invisível, como o racismo por exemplo. Então eu acho que o machismo do samba existe porque o samba é um reflexo da nossa realidade. E é bom que seja exibido assim, sabe, real? Porque a gente tem como combater. Seria pior se as mulheres continuassem invisíveis, porque a mulher dentro no samba foi apagada durante muitos anos. A gente tem um ritmo que foi trazido por uma mulher, a Tia Ciata, que veio de Santo Amaro até o Rio de Janeiro trazendo o samba. Ela improvisava, tocava pandeiro, tocava prato, ela cantava, e a gente não sabe quase nada da Tia Ciata. A gente sabe do Pixinguinha, do Donga, do João da Baiana e de todos que vieram depois deles. A gente tem a Dona Ivone Lara que foi a primeira mulher a fazer um samba enredo. Será que a Dona Ivone Lara não influenciou outras mulheres a compor samba enredo? Existe um espaço de tempo muito grande sem a mulher estar ali, depois da Dona Ivone Lara, eu fui a primeira mulher a ganhar um Estandarte de Ouro de samba enredo. O primeiro oficial, pois eu considero que fui a segunda, já que na época da Dona Ivone não existia o Estandarte de Ouro. E agora a gente já tem a Manu da Cuíca compondo samba na Mangueira, tem a Milena Vaine na Mocidade que também está compondo samba. Antes da pandemia eu estava com um show chamado Sorriso Negro, só com instrumentistas mulheres. Às vezes quando saiamos para as rodas a gente via a atitude dos caras tentando ensinar a tocar, ou fazendo cara feia. Mas eles fazem cara feia de lá eu faço de cá e tudo certo.
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Você já tinha uma carreira importante na música, mas as lives te deram uma nova exposição, todo mundo começou a falar de você. A gente sabe que esse período da pandemia abalou financeiramente muita gente. No seu caso, esse sucesso veio com um impacto financeiro? Eu tive um aumento do número de seguidores, tinha 98 mil seguidores e hoje em dia tenho 350 mil. Isso mudou, o meu alcance. Eu tive patrocínio para fazer duas lives, não é um patrocínio da minha carreira. E eu tenho recebido algumas propostas de publicidade. Espero que, com o fim da pandemia, eu consiga realmente abrir os meus caminhos, aumentar o meu público. Por enquanto o aumento foi do número de pessoas que me seguem. Mas me preocupa muito os pequenos trabalhadores porque, quando uma roda de samba para, o primeiro que deixou de receber dinheiro é o músico, mas o ambulante que trabalha em volta vendendo bebida deixou de receber dinheiro, o técnico de som, o iluminador. Essas pessoas são invisíveis, mas são as que ajudam os negócios a acontecerem. O meu roadie, que trabalha comigo em show, ficou sem receber esse tempo todo. Eu fiz duas lives e pedi uma contribuição financeira, aí as pessoas depositaram e eu consegui um dinheiro para essas pessoas, para as mulheres que tocam comigo, para a minha equipe, produtor, roadie, técnico de som. Mas isso é o meu lugar, eu não sei como é para essa galera que vive de gig, principalmente essas mulheres que acabaram de entrar nesse mercado de trabalho, que tocam surdo, violão, participavam de várias rodas, e deixaram de trabalhar. Como é que se coloca comida dentro de casa? A situação é muito difícil e geralmente quem mais precisa não pede. Quem precisa mais está em silêncio, tentando resolver o problema dele de outros jeitos.
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