A atriz fala sobre casamento, ansiedade na pandemia e a personagem em "Bom dia, Verônica" que lhe tirou o sono
Uma policial obstinada em capturar dois criminosos em série que atacam mulheres – essa é Verônica, personagem que está tirando o fôlego de muitos espectadores e também tirou o sono da atriz que a interpreta, a gaúcha Tainá Müller. Lançada neste mês pela Netflix, a série Bom dia, Verônica é um suspense que levanta um debate importante sobre a violência a qual as mulheres estão expostas no Brasil. A questão já sensibilizava Tainá muito antes da série: “O machismo nada mais é do que ver a mulher como um objeto. Os homens se sentem à vontade para avançar sobre esses corpos sem autorização porque não é um sujeito, é um pedaço de carne”.
Antes de entrar na pele de Verônica, Tainá encarou o cotidiano de uma Delegacia de Homicídios no Rio de Janeiro e pôde ver de perto a rotina de mulheres comprometidas em solucionar crimes apesar das situações adversas no ambiente de trabalho. No papo com a Trip, ela fala sobre machismo – dentro e fora das delegacias – e os efeitos da pandemia em sua ansiedade e no casamento. "A pessoa com quem você quarentenou é com quem você tem coisas profundas para resgatar ou resolver: ou vai ou racha", diz.
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Trip. Bom Dia, Verônica é uma série que tem sido muito elogiada. Além de uma história legal e papéis bem trabalhados, o que é necessário para um trabalho rolar bem como está sendo com esta série?
Tainá Müller. É um encontro ou uma sincronicidade incrível quando um trabalho acontece como Bom dia, Verônica. O Zé Henrique Fonseca [diretor] tem um bom gosto e me deu uma confiança. Quando você confia no gosto da pessoa, quando você vê que tem uma sintonia e afinidade estética, você se sente mais à vontade. E ele inventava umas coisas na hora. Por exemplo, a cena do banho de sangue, que foi uma coisa que ele teve a ideia dois dias antes, não estava no roteiro, mas eu me senti tão à vontade para me jogar ali, confiei tanto nele, no seu olhar, que fui. Acho que intuitivamente todo mundo sabia que estava falando de algo muito importante, que merecia muita seriedade, muita entrega e muito axé para a gente fazer aquilo, para fazer aquela energia girar mesmo. E foi o que aconteceu. A série trata de assuntos pesadíssimos, se a gente entrasse total naquele dark a gente não sobreviveria a um set de quatro meses. Porque a gente não está falando de um longa-metragem que se encerra em seis semanas, é uma série de oito episódios. Era muito engraçado que fazíamos uma cena muito pesada, mas imediatamente depois do "corta" se instaurava uma certa leveza. Eu acho que o Zé Henrique tem isso, é um excelente piadista, muito inteligente, rápido no raciocínio, engraçado. Eu fazia a cena e depois eu estava rindo. Acho que foi esse o segredo da nossa sobrevivência para conseguir ter o punch de correr essa maratona.
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Para interpretar a Verônica você fez uma preparação em uma Delegacia de Polícia no Rio de Janeiro. Como foi essa experiência? Eu fui guiada por um preparador zero autoritário – pelo contrário, um doce –, que é o Sérgio Pena. A proposta dele foi muito legal porque foi bem dinâmica. Ele levava às vezes um dançarino no ensaio e a gente tinha um dia inteiro só de improvisação, uma coisa mais física. Ele levou uma cantora e a gente cantou uma música que tinha a ver com o espírito da Verônica. A gente ia para a beira da praia e eu escrevia como se eu fosse a Verônica, ele me filmava, e eu ficava ali tentando entender a psique dessa personagem. E ele também me acompanhou nessa Delegacia de Homicídios no Rio. Não preciso nem dizer que Delegacia de Homicídios de cidades como o Rio de Janeiro são barra pesadíssima. Foram momentos perturbadores, eu não conseguia dormir à noite nesse período, entrei em contato com crimes verdadeiros. Eu queria saber como é que se analisa uma cena de crime, como é que você interroga uma pessoa e tira uma informação que ela não quer dar, as coisas bem básicas. Acho que eu tinha que ter essa vivência pra fazer uma policial. Ali eu encontrei peritas, escrivãs, investigadoras. É importante dizer que tem a coisa da corrupção sistêmica, mas a gente não pode também generalizar. Eu conheci pessoas muito vocacionadas ali, porque a situação delas é precaríssima. Teve um dia que a escrivã cujo trabalho eu estava acompanhando disse: "Hoje eu não estou bem, estou com cólica". É muito difícil trabalhar com cólica, seja fazendo cena, no escritório ou ali na polícia. E entra o chefe dela e fala: "Amanhã tem operação às seis da manhã". Caramba, uma cólica e você pegar num fuzil, ir pra guerra... Quanto você tem que ganhar em troca disso? E elas não ganham, a viatura não tem ar condicionado, na delegacia falta tudo. É uma situação precária e tem muita gente ali que está afim de trabalhar, porque tem um certo idealismo, assim como a Verônica tem. Eu colei muito nas mulheres lá e elas cortam dobrado, porque é um ambiente ainda muito masculino.
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Em 2013 você participou de uma edição da Revista Tpm sobre violência sexual. Nessa matéria você dizia: "Quanto mais exaltada a mulher é na sua beleza, na sua sensualidade, menos respeitada ela parece ser". Você já sentiu isso na pele? Sim. Não gosto de usar a palavra preconceito. Preconceito é uma coisa muito mais barra pesada do que isso. Mas acho que existe uma ideia de que a mulher não pode ocupar tanto os espaços de poder. Tendo em vista que a beleza é um poder nessa sociedade, ela não pode ser bonita e inteligente ao mesmo tempo, sabe? Vejo muito isso com Gabriela Prioli, por exemplo, porque ela é linda, se veste bem, é vaidosa, e aí ela não pode ser mestra em Direito? Eu vejo um certo desdém com uma mulher que agrega tantos valores assim. O machismo nada mais é do que ver a mulher como um objeto e não como sujeito, ver um pedaço de carne. Tanto é que os homens se sentem à vontade para avançar sobre os corpos dessas mulheres sem autorização. Porque não é um sujeito, não é a Maria, a Carolina, a Fernanda, é um pedaço de carne. A sociedade patriarcal fez isso com a mulher durante a história. Se você estudar, as mulheres sempre foram editadas para fora da história, é como se não interessassem. E aí a gente tem a ideia de que só os homens pensaram, só os homens que criaram os grandes feitos científicos, matemáticos e filosóficos da humanidade. Existiram muitas mulheres pensantes nessa história toda, mas que foram editadas para fora dela. Por exemplo a Safo, que é considerada uma poeta, mais do que uma filósofa, e que pensou a condição de gênero lá na Antiguidade. Mas quando a gente pensa em filósofos, pensamos em Platão, Sócrates e Aristóteles. A Safo nunca entra. Eu acho que quando a mulher tem esse atributo da beleza existe um certo olhar: "Ela já é um objeto de atração, e ela ainda pensa. Que estranho isso, né?"
Em 2018 você esteve com o seu marido, Henrique, na Casa Tpm falando sobre relacionamentos. Durante o isolamento social na pandemia certas dimensões dos relacionamentos afloraram. Como é que tem sido pra você lidar com o casamento e a vida em família na quarentena? Foram altos e baixos emocionais. Nos cinco primeiros meses da pandemia a gente não foi nem ao supermercado, ficamos só os três isoladaços. Eu tive muito pânico pelo Henrique porque ele é muito asmático, então eu tinha uma coisa assim: "Eu não posso pegar esse negócio de jeito nenhum". Uma hora a gente começou a flexibilizar mais a vida, com cuidados. Tiveram momentos de ansiedade, a gente ter que se encarar assim, a família. Mas ao mesmo tempo eu vi como uma oportunidade também. Eu acho que a gente está vivendo uma purga planetária de verdade e com quem você quarentenou é com quem você tem coisas profundas para resgatar ou resolver: ou vai ou racha. Eu encarei isso assim. E agora a gente deu uma amadurecida como casal muito legal, estamos numa super conexão. Eu estou há oito anos com ele. Todo mundo que é casado há bastante tempo sabe que são fases e fases, e a gente está numa fase boa agora. Mas é uma construção diária, é você escolher todos os dias aquela pessoa, você se questionar: "É isso eu quero? então vamos lá."
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Em 2010 você escreveu na TPM sobre a sua prática de meditação. Foi antes de existirem coisas tipo aplicativos de mindfulness, que você liga no meio da rua e te ajudam a meditar. Eu já vi médicos respeitados dizerem no passado que meditação era uma bobagem e hoje existem estudos que comprovam seus efeitos terapêuticos. Mas eu queria que você contasse um pouco da sua relação com essa ferramenta. O que tenho a dizer sobre meditação é que essa noite, especificamente, eu perdi o sono às três da manhã. Eu não dormia mais e sentei, tentei meditar e não consegui. Falhei miseravelmente na minha tentativa de meditar. Sou muito esponja do mundo e o lançamento da Verônica, muitas demandas, ter uma criança em casa sem escola: estou numa fase um pouco ansiosa da minha vida. Mas eu acho que meditação é a academia do cérebro. Tenho certeza de que eu não consegui meditar porque faz tempo que eu não medito. É que nem você passar cinco meses sedentário e ir se jogar na academia achando que vai performar como um atleta. Não vai. É um exercício. Realmente você tem que se colocar diariamente naquela frequência para cada vez meditar melhor. E no momento que você para, você perde.
E da época que você escreveu essa experiência para cá você deixou de praticar? Eu fiquei dois anos meditando disciplinadamente duas vezes por dia. Isso mudou a minha vida de verdade. Acho que foi a primeira abertura de consciência que eu tive, seja lá o que isso quer dizer. Mas depois eu paro, esse que é o problema. É tipo academia, tem que ficar para sempre. Eu sou meio indisciplinada, geminiana. Vem um trabalho, já não medito. E depois que eu tive filho ficou muito difícil de meditar. O Martim é quem me acorda de manhã, e eu gostava de meditar quando acordava. Ontem eu pensei: "Cara, eu preciso voltar, e voltar seriamente, para quando eu precisar eu ter essa ferramenta".
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Tem uma história que você sai do Rio Grande do Sul, mas o Rio Grande do Sul não sai de você, né? Como é para você voltar para lá hoje? O que você sente? É engraçado porque essa sempre vai ser a minha casa. Uma vez gaúcho, gaúcho para sempre. A nossa cultura é muito forte em todos os sentidos. Eu morei na China e lá eu frequentava uma churrascaria onde os chineses estavam vestidos de gaúchos. Eu fiz até uma matéria para o Zero Hora sobre essa churrascaria. O gaúcho meio que se encontra em comunidades no mundo inteiro, é muito engraçado. Mas no Rio de Janeiro eu não tinha uma comunidade de gaúchos, e isso me fez muita falta. O gaúcho que vai para o Rio de Janeiro gosta do surfe, e eu não sou uma pessoa do surfe. Eu sabia que tinha a galera do chimarrão na praia, mas eu também não gosto muito de praia urbana. E aí São Paulo tem uma super comunidade, e há anos eu me sinto em casa aqui. A gauchada se acolhe, se recebe, volta e meia tem um churrasco na casa de alguém. Eu acho que a gente tem uma coisa do povo guerreiro, a galera que não se entrega, está na nossa alma. Meu pai é um gauchão típico, gesticula muito para falar e conta seus feitos, suas vitórias e fala: "Vocês são netas de Maragato". Ele teve três meninas, mas ele sempre nos criou para a pelea [luta], "morrer peleando". É um pouco esse o ímpeto do gaúcho, de realmente desbravar, de ter coragem. A coragem é uma virtude muito valorizada no Rio Grande do Sul e eu me identifico. Na hora de fazer a Verônica por exemplo, vem a gaúcha para mim. Eu posso não falar com sotaque na série, mas acho a Verônica bem mulher dos pampas.
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