O ex-diretor do INPE que se tornou um símbolo da luta contra o negacionismo fala sobre os ataques do governo, agronegócio e Elon Musk
O físico e engenheiro Ricardo Galvão era um professor universitário respeitado, mas que nunca tivera grande projeção fora do universo científico. Tudo mudou em julho de 2019, quando o presidente Jair Bolsonaro colocou em xeque a veracidade dos dados divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais sobre o desmatamento da Amazônia e acusou o "cara à frente do INPE" de estar "a serviço de alguma ONG". Esse cara era Ricardo Galvão, então diretor da instituição. Mesmo sabendo que seria exonerado, ele reagiu e rebateu veemente as críticas do governo, atraindo atenção da mídia brasileira e internacional, que passou a ficar de olho na forma como o país lidava com as questões ambientais.
Com a repercussão do caso, Galvão deu palestras no mundo todo e foi eleito um dos dez cientistas do ano em 2019 pela revista Nature, uma das mais prestigiadas na área da ciência. Em 2021, ele recebeu da Associação Americana para o Avanço da Ciência o Prêmio da Liberdade e Responsabilidade Científica. Homenageado pelo prêmio Trip Transformadores 20/21, o professor do Instituto de Física da USP - IFUSP bateu um papo com o Trip FM sobre Bolsonaro, os incentivos à ciência no Brasil, o futuro do agronegócio e os planos de Elon Musk para conquistar o espaço. Ouça o programa no Spotify, no play abaixo ou leia um trecho da entrevista a seguir.
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Trip. Quando o senhor reagiu aos ataques de Jair Bolsonaro, as pessoas tomaram conhecimento do tema e abriu-se espaço para falar com clareza sobre ciência ligada à natureza. Como alguém que se dedicou 50 anos a estudar e compartilhar conhecimento fica ao ser questionado pela supostamente maior autoridade do país?
Ricardo Galvão. A minha reação ao presidente Bolsonaro foi porque ele usou palavras muito mais contundentes, disse que os dados do INPE eram mentirosos porque eu estaria a serviço de uma ONG internacional contrária aos interesses do Brasil. Naquela época eu tinha 48 – agora tenho 50 – anos de serviço público fazendo pesquisa sem ter me aposentado. Aquilo foi um soco direto na minha alma de cientista. Porque ele não só estava atacando a mim, mas os dados que o INPE produz, onde cientistas de altíssimo nível há mais de 30 anos se dedicam a desenvolver o sistema de monitoramento da Amazônia, respeitadíssimo no mundo todo. O que mais me perturbou foi que, desde que o governo Bolsonaro assumiu, começaram ataques ao INPE que não apareceram na imprensa. O ministro Ricardo Soares sempre atacou a maneira com que o instituto produzia os dados, com o interesse de comprar outro sistema de uma empresa americana, e todos os ataques dele foram respondidos da forma correta, que se faz de acordo com a metodologia científica. Eu tinha que trazer o problema à tona. Se eu ficasse quieto, seria exonerado da mesma forma, não tenha dúvida, e viriam consequências bem mais fortes sobre o INPE. E custou o meu cargo, custou muito sofrimento, mas o INPE foi salvo. O problema da Amazônia, a posição do INPE, foram colocados a nível internacional, isso não tenho a menor dúvida.
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Dá vontade de ir embora como centenas – talvez milhares – de intelectuais e cientistas brasileiros fizeram nos últimos anos para procurar um ambiente um pouco menos hostil para estudar e para pesquisar? Eu me doutorei no MIT, uma das melhores escolas do mundo, em 1976. Naquela época eu pesquisava fontes de energia com fusão nuclear, uma área que tinha uma importância enorme no cenário internacional, então todos os dias vinha alguém de alguma empresa ou de outra universidade oferecendo emprego. O mais difícil de recusar foi um convite para a posição de professor assistente Doutor na Universidade Columbia, em Nova York, nos Estados Unidos. Mas essa foi uma decisão que tomei porque eu sentia o meu dever de voltar para o Brasil para ajudar a ciência brasileira a crescer. Eu recebi uma bolsa do MIT como assistente de pesquisa, mas o Brasil pagou as taxas escolares. Se eu tivesse ficado lá fora, talvez minha carreira científica teria sido mais brilhante, mas eu não teria formado outros pesquisadores, como eu formei, no meu país. Eu tive a mesma oportunidade em 1988, quando eu trabalhei por um ano no Laboratório em Oxford, na Inglaterra, e na volta recebi uma carta me oferecendo um cargo permanente. Eu também recusei, porque eu senti que tinha uma obrigação com o país. Então não seria o ataque de um presidente tosco e completamente ignorante que iria me fazer desistir de uma decisão de vida que eu tomei há tantos anos.
Existe um grande embate entre ambientalistas e representantes do agronegócio, mas, ultimamente, temos começado a ver algum nível de convergência de interesses, pelo menos algum diálogo. O senhor acredita que esses dois planetas tendem à convergência ou esse embate ainda vai durar muito tempo, sem muito acerto?Ambientalistas e produtores rurais vão se acertar? É preciso discernir bem os dois cenários. Primeiro, não podemos colocar os produtores rurais numa bacia única. Nós temos um agronegócio muito desenvolvido, profissional, que utiliza fortemente o desenvolvimento científico. Mas existe, sim, uma parcela que são o que eu chamo de ruralistas predatórios, principalmente na Amazônia. Não sei se todos sabem, mas a Amazônia começou a ser explorada no governo militar, quando se teve a ideia, em 1970, de construir a Transamazônica. Eu me lembro que um general disse que a Amazônia seria conquistada seguindo a pata do boi, ia-se botar o boi entrando e explorando. Então a Amazônia foi explorada com uma mentalidade ruralista bastante predatória, e que nós sabemos que existe também na Mata Atlântica, no Cerrado. E é esse pessoal, que eu chamo de má bancada ruralista do Congresso, que vai contra os ambientalistas.
Mas hoje em dia nós temos várias publicações e modelos claros de exploração da Amazônia de forma sustentável e bastante viável do ponto de vista econômico. Um exemplo é o presidente da Associação do Agronegócio brasileiro (ABAG), Marcelo Brito, CEO da Abrapalma, que produz óleo de palma, óleo de dendê, na Amazônia, explorando só áreas já desmatadas ou pastagens. Ele não corta mais. E eles ganham dinheiro. É importante esse pessoal do agronegócio ter consciência que, se continuarem com essa mentalidade de explorar de uma forma predatória, desmatando, eles estão com seus dias contados.
Existe uma certa celebrização dessa figura, o Elon Musk, que é um cara relativamente jovem e que tem feito coisas muito impressionantes. A gente fica batendo palma pro cara que está dizendo que vai para Marte e que quer fazer uma nova civilização lá. Só que a gente não conseguiu arrumar, aliás, destruímos o nosso planeta. Como é que você vê uma evolução da ciência desse nível e ao mesmo tempo a ignorância tosca? Esse contraste da habilidade do ser humano de fazer coisas inacreditáveis e, ao mesmo tempo, não consegue se organizar de uma forma razoável e vai se matando. Esse contraste sempre existiu no espírito humano. Essa atração pela exploração, pelo desconhecido, para grandes viagens, grandes conquistas, sempre existiu no espírito humano, mesmo em condições muito toscas, como você disse, muito atrasadas. Pensa nas viagens portuguesas, por exemplo. Eles tinham problemas mais sérios para resolver em Portugal, é claro – a população portuguesa era ignorante, anti-democrática, passava fome sob domínio de homens poderosos. Mas esse espírito desbravador, de procurar novos horizontes, sempre existiu. Isso às vezes vai para a ciência, às vezes vai para outros desbravamentos. Então essa questão de explorar Marte, a Lua, vai sempre existir. Na primeira vez que o homem olhou para o espaço ele já pensou em conquistá-lo. Mas o Musk precisa tomar um pouquinho de cuidado, ele usa também isso como propaganda. É óbvio que ele tem aí um investimento muito grande, é extremamente inteligente e muito empreendedor, não tem medo de desafios. Mas muito disso vem da propaganda.
Não dá para nós resolvermos todos os problemas para fazer alguma coisa. A humanidade avança aos saltos. É difícil nós pensarmos que vamos organizar tudo antes de progredir. Tem um cientista belga que ganhou o Prêmio Nobel, Ilya Prigogine, que fala como que do caos às vezes nós temos um pico de desenvolvimento. No caso da Lua, o interesse não é só a questão de mandar turista. Nós temos possibilidade de explorar muita coisa na Lua que está acabando na Terra, por exemplo o gás hélio, importantíssimo em aplicações médicas, industriais. Existem até projetos de espaçonaves para transportar gás hélio. Então, é claro que as pessoas estão vendo a longo prazo, mas esse espírito exploratório vai sempre haver, infelizmente, concorrendo com a solução dos nossos problemas terrenos mais básicos.
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