A atriz, diretora e escritora fala sobre cultura, relacionamento, feminismo e o processo para ser dona de seu próprio discurso
Maria Flor fez papéis em novelas da Rede Globo, séries e no cinema – chegou até a contracenar com Anthony Hopkins no filme 360, de Fernando Meirelles –, mas, nos últimos anos, ganhou reconhecimento também na internet. Em 2019, ao lado de seu companheiro, o ator Emanuel Aragão, lançou no YouTube o canal Flor e Manu, um espaço para falar sobre assuntos como relacionamento e sexualidade que já conquistou mais de 200 mil seguidores.
Durante a pandemia, ela usou seu Instagram para dar vida à personagem Flor Pistola, que verbaliza as indignações de todo brasileiro que acompanha as notícias. Há quem confunda a personagem, que não usa peruca nem qualquer disfarce, com a própria atriz. E os comentários ácidos sobre o presidente Jair Bolsonaro renderam à Maria Flor um tsunami de ódio, fake news e até ameaças de morte.
No papo com a Trip, a atriz, roteirista, diretora e escritora – seu livro, "Já não me sinto só", está em pré-venda pela Editora Planeta – fala sobre o desmonte da cultura, relacionamento, feminismo e a dificuldade de se livrar das cobranças. “Não sei se eu consegui abandonar totalmente o papel de boa moça", diz. "Eu tinha 14 anos quando fiz meu primeiro comercial e, como modelo ou atriz, você é colocada como objeto. Sua opinião, aquilo que você acredita, aquilo que você pensa, não é levada em conta. Então ser dona de um discurso é um processo de libertação, e um processo que eu trabalho até hoje”
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Trip. Flor, me conta um pouquinho sobre esse seu mergulho na literatura. O que te levou a resolver se expor? Porque a literatura é uma maneira de a gente rasgar o peito e colocar pra fora coisas que estão lá dentro. Como foi o processo de chegar nesse lugar?
Maria Flor. Eu escrevo desde adolescente, foi uma coisa que eu sempre gostei de fazer. Escrevi muito como terapia, pra conseguir tirar um pouco as minhas angústias de mim e colocar ali no papel. Isso serviu muito pra mim na adolescência, mas continuou na minha vida adulta. E o livro veio dessa vontade de escrever que já tinha começado com um roteiro. Eu escrevi uma série chamada “Só Garotas”, que dirigi para o Multishow com mais três amigos. E aí me deu vontade de fazer esse livro sobre uma personagem que acaba de se separar, sai da primeira grande relação da vida dela e se encontra totalmente perdida. Ela passou seis anos com essa pessoa e de repente se vê sozinha e não sabe muito bem quem ela é. Eu acho que tem muito a ver com coisas que eu vivi e que eu acabei escrevendo. Roubei um pouco desse "diário", de textos que eu tinha escrito tentando me libertar, me curar dessa que foi minha primeira separação. Está sendo muito legal lançar o livro agora, mas estou nervosa para saber o que as pessoas vão achar, insegura também, porque, como você falou, escrever é muito mais exposição. A escrita está muito ligada ao jeito que você pensa, à forma que você vê o mundo, então, apesar de ser ficção – e, no caso, é um romance –, tem coisas que são pessoais.
Falando em coisas pessoas, você tem um canal no YouTube com seu companheiro, Emanuel. Tem uma coisa de se expor de verdade e as pessoas adoram, né? Como é que nasceu esse projeto? O canal começou na verdade com o Emanuel fazendo vídeos que não tem nada a ver com o que a gente faz agora. E eu fiquei entusiasmada com essa ideia, de ter um lugar pra colocar a opinião. Eu não era uma usuária do YouTube e hoje em dia eu não vivo sem. Eu quis experimentar também e a gente resolveu fazer vídeos juntos falando sobre relacionamentos. E fazer sem nenhum corte, a gente não corta nossos vídeos. Então, às vezes a vida não permite que a gente tenha tanta troca, tanta conversa no dia a dia, mas as pautas do canal possibilitam que a gente fique ali duas horas conversando.
Vocês já se arrependeram de ter publicado algum vídeo? Alguma vez você sentiu que se expôs um pouco demais? Não. Eu acho que é legal, que é importante a gente falar sobre relacionamento e não tem nada no canal que seja um grande tabu. Nem sei se posso dizer "me arrependo", mas no ano passado deixei vazar a minha grande revolta contra o atual presidente e isso me causou muitas dores de cabeça. Fui muito agredida pelos apoiadores do presidente e isso me fez muito mal num primeiro momento. Depois eu entendi que fazia parte do jogo. Mas me arrependo de ter colocado aquilo no nosso canal, que não tem nada a ver com política. Porque ali é um espaço sobre relacionamento e um canal muito amoroso. Então me arrependo porque o canal foi muito bombardeado, agredido, e isso me deixou chateada.
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Numa conversa com a Trip, você disse que o avanço do feminismo ajudou você se expressar sexualmente e abandonar o papel de “boa moça”. Fala um pouco desse processo pra gente. Não sei se eu consegui abandonar totalmente o papel de boa moça. De vez em quando eu boto meu pezinho nele e, quando eu percebo, falo: “Não, peraí, por que é que eu tô agindo assim, fazendo isso? Porque o outro vai aceitar mais se eu fizer isso?”. É muito difícil. Minha mãe e meu pai nunca me proibiram de nada, mas, ao mesmo tempo, fui criada na classe média carioca, em escolas tradicionais. Isso está muito enraizado na nossa cultura, naquilo que a gente consome, naquilo que a gente lê, vê no cinema. Mesmo tendo uma criação livre eu não consegui fugir desse lugar de me adequar àquilo que os outros esperavam de mim e àquilo que a minha própria imagem deveria ser. Esse foi um processo muito longo. Antes de ser casada com o Emanuel, eu tive dois outros relacionamentos que foram muito importantes para mim, mas onde eu fiquei muito dentro de uma caixinha. “Eu preciso ser essa mulher, preciso ser fofa, preciso ser adequada, preciso falar baixo, não posso ficar bêbada, não posso usar uma saia tão curta”. Isso tudo pra mim era muito normal. E olha que eu sou uma mulher branca privilegiada, então poderia romper com isso, mas eu não rompia porque ela achava que era isso mesmo.
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Todo o movimento feminista que surgiu no Brasil me modificou e me fez pensar muito sobre a minha colocação no mundo e sobre a minha colocação como atriz também. Eu tinha 14 anos quando fiz meu primeiro comercial e, como modelo ou atriz, você é colocada como objeto. Sua opinião, aquilo que você acredita, aquilo que você pensa, não é levado em conta. Você é um objeto do outro, que é o dono do discurso. Então ser dona de um discurso é um processo de libertação. É um processo que eu trabalho até hoje. Aos 37 anos, eu ainda tenho inseguranças de ser dona do meu próprio discurso. Me deixa nervosa, me deixa ansiosa, eu falo: “Caramba! Eu quero ser aceita, ser amada pelas pessoas”. Eu acho que isso faz parte de todos nós, mas para nós, mulheres, é muito mais complicado, porque a gente naturalmente vai ser vista como objeto no primeiro momento. Foi muito difícil me libertar, também como atriz, de me colocar mais no set, me colocar mais com os diretores ou diretoras com quem eu trabalhei. Eu fui entendendo que eu precisava me colocar para me respeitar, para não me sentir oprimida e me sentir dona da minha própria ação, daquilo que estava colocando no mundo. Eu acho que isso é difícil para qualquer pessoa: se autorizar a ser dono do seu discurso ou daquilo que você escolhe.
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Sexualmente para mim também foi uma grande libertação. O amor romântico é muito cruel, você vê aquelas cenas dos filmes hollywoodianos e de repente você está querendo o príncipe encantado. Você às vezes se apega a isso e não consegue se relacionar, não sabe que não existe o príncipe encantado, que não vai encontrar o parceiro perfeito, o homem perfeito, e também imagina o sexo daquele jeito que você vê em “Um Lugar Chamado Nothing Hill”. E aí quando você se depara com a realidade do que é o gozo feminino, de como é que é uma mulher gozar, como é que uma mulher se autoriza a gozar, como é para uma mulher estar no sexo de forma plena. Eu acho que continuo pensando e atenta sobre essas coisas para não me deixar cair nesse lugar de submissão ou de aprovação. E também atenta ao meu redor, com as minhas amigas, com as pessoas à minha volta. Isso é um trabalho que a gente precisa fazer.
Os profissionais das artes cênicas são uma das categorias aniquiladas e que estão sofrendo demais com a interrupção da produção, das novelas e dos filmes. Sob o ponto de vista da grana, o que acontece com um ator ou atriz, como você, nesse período de freio, de arrumação planetária? Eu tive muita sorte e muito privilégio de estar fazendo uma novela quando a pandemia aconteceu. Então quando a pandemia aconteceu eu estava contratada pela TV Globo, – eu não sou uma atriz contratada eternamente. Se eu não tivesse, não teria como viver. O que eu posso dizer é que o audiovisual parou, o teatro parou. Os atores que dependem disso ficaram totalmente sem nada, sem nenhum recurso! E a ajuda que o governo federal deu foi muito pequena. Eu tenho amigos que estão sem grana e tiveram que mudar totalmente de vida, largar os apartamentos para morar com os pais, e isso é muito grave. Isso foi uma coisa que o presidente conseguiu fazer com a classe artística.
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Falam que a gente vivia da mamata da Lei Rouanet. Não entendem como funciona a lei e não entendem que o trabalho artístico envolve muito mais do que atores, mas uma cadeia gigantesca de pessoas para que uma série chegue na televisão ou uma peça chegue no teatro. Fora isso, sem a peça, sem o filme, sem a série, as pessoas vão consumir o quê? As pessoas esquecem que aquilo que elas estão consumindo diariamente é a cultura. É muito estranho que tenham criado essa ideia de que os artistas são pessoas que não trabalham, que mamam nas tetas do governo. Eu fico realmente decepcionada com os rumos que a gente tomou, como país, como sociedade. Eu acho muito triste esse buraco que jogaram os artistas. Eu não sei como o cinema vai continuar, como o teatro vai continuar. Me preocupo muito com todos os atores e artistas desse país. E comigo. Porque quando acabar minha novela, o que é que eu vou fazer? Como eu vou conseguir produzir ? Eu não sei, é tudo muito incerto.
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