Exilados do próprio corpo, desterrados do desejo. Uma conversa com Joana Bértholo
O regresso ao corpo seria a Odisseia dos nossos dias, pelo modo como vivemos dispersos, alheados, infinitamente desgastados, carregando um cansaço crónico, "ou melhor, de cronos", como escreve Joana Bértholo logo no arranque do seu livro mais recente, "O meu treinador". Estamos todos cansados de lidar com o tempo, com as incessantes compulsões a que vivemos submetidos, sentindo a nossa atenção consumida, constantemente aliciada, cativada ou capturada, comprada, subornada, defraudada, pervertida, presa. Como se lê no editorial do mais recente número da Electra, dedicado a este tema, "sem atenção, o mundo torna-se disperso, insustentável e até ausente - e nós dispersos, insustentáveis e ausentes nele". Se houve um movimento da Presença entre nós, o mais honesto seria reconhecer que vivemos hoje o seu oposto, num regime da Ausência, desfocados, incapazes de fixar os nossos próprios contornos, estamos contaminados pelo ruído. Regressar ao corpo seria recalibrar os instrumentos da nossa perseguição ao real, procurando restabelecer uma atenção tranquila e indestrutível. Seria desde logo necessário voltar à condição do principiante, aquele que é capaz de criar aberturas, inícios. De forma a evitar esta aniquilação em que somos coagidos pelos elementos que nos cercam, de forma a retomarmos escolhas e até erros próprios, teríamos de aceitar um largo período de suspensão, sem chegarmos a lado nenhum. Na linha daquilo que desejava Beauvoir, criando um percurso feito todo ele só de pontos de partida, tendo a humanidade em cada homem um novo ponto de partida. "E é por isso que o jovem que procura o seu lugar no mundo de início não o encontra e se sente desamparado, inútil, sem justificação." A nossa convidada neste episódio tem atrás de si um longo e exigente percurso em que foi obrigada a repensar bem os critérios pelos quais era avaliada ou se avaliava a si mesma, percebendo como muitas vezes o que parece um falhanço pode apenas ser a distância errada. Como assinalava Wallace Stevens, a nobreza da poesia “é uma violência interior que nos protege da violência exterior”. Hoje, resgatar a consciência e e possibilidade de definir um destino autónome não exige menos do que uma poética nestes termos. Cabe-nos escapar à guerra de concorrência sem tréguas que é travada em todos os planos, devassando a nossa intimidade, ao ponto de sermos expulsos dela, e perdermos a capacidade de nos defenirmos e também de sentirmos desejo. Nicholas Carr remete-nos para esse entendimento que colocava no início o Verbo, do qual a própria carne deve decorrer. Este autor assume a nostalgia do velho cérebro, isto é, do cérebro literário. Em oposição à distracção a que somos submetidos na época pelos media digitais, a cultura do livro favorece a concentração. O velho cérebro é, segundo Carr, uma mente linear, literária, que foi o fulcro da nossa sociedade, da arte e da ciência. António Guerreiro sintetiza a sua tese, vincando como o acesso a uma quantidade de informação e a experiências inimagináveis até há pouco tempo tem o efeito de alienar "o que temos de mais autêntico, já que os instrumentos entorpecem as nossas capacidades naturais mais humanas e mais íntimas, as do raciocínio, da percepção, da memória e da emoção".
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