Agora que todos os raciocínios são trincheiras, que um homem que se dê ao trabalho de pensar por si ver-se-á empurrado para as catacumbas de si mesmo, sendo condenado ao isolamento, agora que a quantidade impede qualquer revolta contra ela, quem se esforça por dizer palavras verdadeiras não consegue evitar soar ridículo. Ainda andamos de volta dos jornais, guiados pelos avisos de Karl Kraus contra essa "magia negra", sendo que este se deu conta um dia de que a vida já não passava de uma cópia da imprensa: "A imprensa é um mensageiro? Não, é o acontecimento. É um discurso? Não, é a vida. Ela não só reivindica que os verdadeiros acontecimentos são as suas notícias sobre os acontecimentos como também provoca essa sinistra identidade que gera sempre a ilusão de que as acções são relatadas antes de executadas"... Um século depois de a humanidade ter sido empurrada para uma guerra mundial, hoje a guerra disseminou-se e afecta todos os aspectos das nossas vidas. "O mundo está ensurdecido pela cadência", prosseguia o satirista vienense. "Estou convencido de que as coisas já nem sequer acontecem, antes continuando os clichés a trabalhar sozinhos. (...) A coisa está podre por obra da linguagem. O tempo já cheira mal de tanta frase feita." Mas o pior é que esse regime de substituição da vida pelos lugares comuns e pelas frases feitas não se contém na imprensa, assaltou todos os aspectos da cultura, de tal modo que, como assinalou António Guerreiro, um dos paradoxos do nosso tempo liga-se ao facto de, apesar dos géneros jornalísticos tradicionais atravessarem um momento crítico e de os jornais terem entrado numa fase de estertor, o jornalismo triunfa por todo o lado. Hoje deu-se algo de inesperado. Sem o menor aviso, caiu o governo. Poderia ser um facto capaz de produzir um verdadeiro abalo, se houvesse do outro lado ainda um povo realmente indisposto e não apenas divertido com a situação, ou distraído com outra coisa qualquer. Como em tudo, nos próximos dias, o choque desta inesperada ocorrência será intimidado pelos clichés e a ordem irá restabelecer-se. Talvez com outras moscas, provavelmente aumentando o nível do zumbido. Pela nossa parte, tivemos a oportunidade de falar com um desses raros heróis anónimos do nosso jornalismo. Repórter com um belo cadastro, autor de várias séries documentais, professor universitário, alguém que se bate ainda pela independência do jornalismo e pela sua capacidade de desmanchar os arranjinhos e esquemas do poder. Godinho tem as maiores suspeitas em relação ao mundo virtual, e esclarece que se "a imensa produção de informação digital parece celebrar a narrativização do mundo, no fundo destrói-a pelo excesso, tal como a massa de comentarismo repentista nos jornais, rádios e televisões vai destruindo a real possibilidade de interpretação que exige respeito, distância e reflexão". Este veterano do jornalismo de investigação não duvida de que "continua a haver jornalismo por todo o lado", mas vê-o de tal forma "desfigurado, desnaturalizado, esvaído ou monstrualizado", que se pergunta se, assim sendo, se pode ainda falar de jornalismo. Estamos na era dos que se deixam arrastar, e se o acto ainda é mais forte do que a palavra, Kraus recorda-nos que mais forte que o acto é o eco. "Vivemos do eco e, neste mundo às avessas, é o eco que desperta o grito." Hoje caiu um governo péssimo. Mas, se há uma coisa de que podemos estar certos, é que nos próximos meses as moscas do costume irão anestesiar-nos de tal modo que acabaremos por engolir algo ainda pior. Isto porque, "na organização do eco, a fraqueza é capaz de uma metamorfose extraordinária".
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