Antes de irmos de férias (ou melhor, antes de vos darmos um período de tréguas), no nosso vigésimo episódio regressamos àquela que é em grande medida a casa da partida, casa de ecos pingados numa música de câmara ardente, casa cheia das marcas de velhos inquilinos, dos que não morrem sem dar luta, e que deixam para trás algum prego só deles, num canto uma ruinazinha que não há maneira de sabermos como resolver. E é com o Changuito que voltamos a ser relembrados daquelas noções mais básicas de como se entra num espaço que não se rendeu aos imperativos dos guias turísticos nem ao regime das atracções desse absurdo desgostante e que passa por vulgar e normal, com ânsia de atrair os turistas em busca da confirmação das suas noções redundantes. Na Poesia Incompleta somos relembrados do que é uma livraria pelo livreiro que há uns anos traduzia estes versos de José Maria Zonta, e que merecem que se restabeleça o paralelo entre aquele espaço defendido do espalhafato da feira geral e uma mulher desejada que defende a sua intimidade: "Não entrar como turista no coração de uma mulher// fazendo fotos/ deixando latas de cerveja/ procurando só catedrais imensas/ e estátuas transparentes// com a mochila cheia de mapas/ e fazendo comida rápida// há um país/ sete cidades/ uma cordilheira e um inverno/ no coração de uma mulher// não bebas só um copo de mar ali// não entres no avião/ apanha o comboio da meia lua// não reveles ali as tuas fotos em uma hora// se não estiver muito frio entra nu// não leves guarda chuva// e sobretudo não cortes árvores no coração de uma mulher/ não costumam voltar a crescer." A paixão tem muito a ver com tudo isto, e esta livraria tem esse esmero fabuloso de um espaço onde circula uma moeda com uma cunhagem muito particular, sendo aquele um território invisível para quem anda por aí a roçar-se em tudo o que é muro com mijo pelas entrelinhas, poetaria aos malhos exaltando os poderes para isto e para aquilo da palavra, falando em cicatrizes, feridas de guerra deixadas por um ou outro verso. Às vezes dá a sensação que o que se nos depara na maioria dos casos são já voodusices, messianismos de fraldiqueiros, as piroseiras de quem anda há meses ou mesmo há anos sem cortar as unhas à sentimentalidade. Se nós e as nossas histórias como as nossas almas passamos por um processo de permanente decomposição e reinvenção, é bom termos um espaço que se desdobra como um incontrolável manuscrito para não nos ficarmos só pelo assédio incessante das máquinas de lavar e baralhar a já tão quebrada louça que vamos tentando reunir sobre a mesa.
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