Temos tido poucos capitães no nosso espaço literário, poucas oportunidades de nos vermos guiados para alto mar ou sequer alta noite em enormes navios de espelhos, esses onde o tempo se confunde de tal modo que nos oferece o delírio de verdadeiras delícias quiméricas, esses capitães cujo grito ou o silêncio nos inunda o sangue e os nervos de tal modo, de tal modo que através dele todos somos capitães, e quando um entre nós se revolta há logo dez mil insurrectos. Fernando Ramalho, livreiro e dinamizador da Tigre de Papel, tem sido um desses raros espíritos capazes de dar o tom, escrutar o mar do fundo, e vem-no fazendo a partir da mais discreta das profissões, a do traficante de outras vozes. Numa altura em que a capital portuguesa é uma cidade sitiada, restam duas ou três livrarias que, como navios de infindáveis ecos, sem se deixarem dominar por qualquer bando de piratas de bidé, mantém um curso inspirador e oferece a perspectiva de outras rotas, agarrando ventos abruptos de modo a que ainda que alguma coisa aconteça. Estas poucas livrarias mantêm-se aferradas a esse pólo imaginário que desmagnetiza os aparelhos mais ordinários de navegação. Como nau encalhada, encontramo-la por ali, em Arroios, com a sua tripulação de fantasmas de variadas épocas e o murmúrio dos anzóis bem fundo nas grandes massas de água numa paisagem discreta, um balanço de mil conversas e desavenças, o tal mapa que oferece às coisas sobre ele dispostas um relevo e um peso concretos para que cada um possa cultivar a sua miséria, essa que, como vincava Álvaro Mutis, é a verdadeira matéria perdurável deste nosso episódio breve sobre a terra. Fomos falar com este livreiro numa tentativa de esquissar os regulamentos internos de um sindicato do crime literário e de eventuais propostas de um colapso que cante.
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