Por cá, nas representações que fazemos de nós próprios, cedemos demasiado depressa ao registo da paródia mais alarve. É um modo de nos defendermos do nosso encanto, das primeiras e mais honestas ambições. Recosemo-nos no interior dessa carapaça desgostante, e assim nos vamos aliviando das exigências que chegámos a alimentar. Hoje, qualquer reflexão que se manifeste entre nós aparece antes de mais como paródia, e é muito difícil ir além dela. “As asas voltam a entrar no pássaro para o atar”, como escreveu Éluard. Seria preciso que o país aderisse, não aos regimes alfandegários e aos mercados comuns, mas ao surrealismo, perdendo o medo de nos surpreendermos, deixando de usar a moeda Bem-Mal, rejeitando corromper o ideal amoroso segundo o regime mesa-de-família-cama-de-casal. Deveríamos preferir o abuso a estes tristes usos que vamos dando à vida. Em vez de sufocarmos em intrigas de poder, mais valia que nos abandonássemos de vez à nossa propensão para a rebaldaria, reconhecendo como o acaso é uma força esplendorosa, e talvez então emergissem novamente impetuosos navegadores nesta tão desfalcada raça. Tudo o que pensamos, exprimimos e fazemos engrossa uma conspiração contra as nossas próprias aspirações, e era preciso assumir um desejo que nos ligasse à realidade, esta que por falta de empenho dos espíritos com alguma apetência lírica, simplesmente recusa a existência do poeta. Se nos tornámos muito hábeis em desenvolver essas debilidades que nos sirvam como justificação para não irmos além do que já somos, isso explica que, por agora, a nossa ainda seja só uma cultura que serve de desculpa. Não fazemos outra coisa senão pedir imensas desculpas por não estarmos à altura de algo mais. Lá nos vamos acolhendo e conformando com a estafada vidinha, a “videirunha à portuguesa”. E, se não deixámos de ser pobres, nunca sequer assumimos as nossas obrigações para com essa condição. Temos o rancor e o ressentimento, mas faltam-nos as forças que lhe são próprias. Como lembra Borges, “ser pobre implica uma posse mais imediata da realidade, um passar por cima do primeiro gosto áspero das coisas, conhecimento que parece faltar aos ricos, como se tudo lhes chegasse já filtrado”. Como não nos livramos dos complexos e da vergonha da nossa realidade, só herdamos filtros, aderimos a esse patetismo degradante de quem se humilha a si mesmo, se escraviza a si próprio. Face a todo esse enredo, a nossa maior pobreza é mesmo o medo que temos de nós próprios, e uns dos outros. Em vez de nos reconhecermos e instigarmos, a nossa cultura apenas nos abafa e trucida. Em vez de retirarmos encorajamento da noção de que há muito por fazer, para nós não parece haver nada mais exasperante que o facto de nós podermos significar ou dizer seja o que for. Se não somos nada ou somos tão pouco, em vez de nos agarrarmos a isso, poderíamos aproveitar e aventurarmo-nos, sermos a frescura vindoura. Seria bom que abdicássemos dessa torpe etiqueta, da barafustação inconsequente, impedindo que o odor dos escombros se dissipe. Uma mulher feita para si mesma, um homem que correspondesse às suas próprias necessidades, isso seria algo que nos faria enfim ter vontade de sacudir as nossas vidas, e vesti-las com certo garbo. Talvez então pudéssemos acolher verdadeiros prodígios, livrarmo-nos dessa telenovela que sempre só tem ouvidos para a bisbilhotice que a todos nos rebaixa. Raramente temos dado a oportunidade uns aos outros para abrir a boca, ou segurar a caneta, não para vir com as bacocas frases do costume, mas para falar do que, em penetração, nos atrai ou comove. Somos assim relativamente mudos, e forçados a pagar multa sempre que assumimos um registo eloquente, sempre que levamos a vida à boca e a reproduzimos com um vigor fantasioso. Derrotados por essa miopia que nos serve de amparo e desculpa, recusamos o conhecimento nítido e imprevisto de que a vida se corresponde, mesmo que de longe em longe, com a poesia. Neste episódio, e com o centenário de Alexandre O’Neill a pairar sobre nós, pedimos ajuda à sua biógrafa, Maria Antónia Oliveira para nos ajudar a pisar esses óculos que muitas vezes servem menos para ver melhor do que para filtrar certas coisas. Ela que também está ansiosa por se despedir dessa forma de viuvez lançada em cima de quem quer que componha e trate da limpeza a seco para a posteridade de um fato de autor corroído pelas traças, vem falar-nos dessas outras assombrações que tem cultivado, num generoso esforço por traduzir em termos vitais um bando de personagens que nunca se quiseram mortas, e melhor ou pior, foram toureando essa e outras fatalidades.
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