O capitalismo serve-se de uma mão cheia de comprimidos de viagra na hora de falar de erotismo, e prefere discutir as preferências em termos de pornografia ou particularidades sobre a penetração do que se recriar em jogos de sedução. Havia aquele tipo com uma eficiência brutal nas saídas à noite e que se limitava a aproximar-se dos alvos e dizer-lhes “queres foder?” Vendo isto alguém lhe disse: Deves estar sempre a levar estalos… e ele assentiu, que não era infrequente, mas que era o preço que pagava de bom grado sendo que com esta abordagem não deixava de foder todas as noites. O capitalismo não vê a diferença entre ele e o Casanova. Melhor ainda seria Gengis Khan, de quem se diz que cerca de um sexto de todos os homens integram a sua descendência. Aí nem estava em questão obter prazer, mas tão-só submeter as populações conquistadas, inseminar as mulheres à força, esmagar a posteridade com o seu material genético. Também o capitalismo só pensa em reproduzir-se, submeter toda a vida, até ao limite da sua extinção. Este espírito ainda repugna a uns poucos, mas cada vez são menos aqueles que não aderem às comunidades de pregar com pregos, de competir e impor-se aos demais. Entre os burgueses, Cesariny só conseguia admirar uma das suas tantas espécies. "Penso que a questão é esta: a gente – certa gente – sai para a rua,/ cansa-se, morre todas as manhãs sem proveito nem glória/ e há gatos brancos à janela de prédios bastante altos!/ Contudo e já agora penso/ que os gatos são os únicos burgueses/ com quem ainda é possível pactuar –/ vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista!/ Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a…/ Não, a probabilidade do dinheiro ainda não estragou inteiramente o gato/ mas de gato para cima – nem pensar nisso é bom!/ Propalam não sei que náusea, retira-se-me o estômago só de olhar para eles!/ São criaturas, é verdade, calcule-se,/ gente sensível e às vezes boa/ mas tão recomplicada, tão bielo cosida, tão ininteligível/ que já conseguem chorar, com certa sinceridade,/ lágrimas cem por cento hipócritas.” Hoje pede-se demasiado da política, mas o vazio é sobretudo de ordem cultural, do espírito, das ideias, e, por isso, também das nossas urgências e necessidades, paixões, desejo. Estamos consumidos por necessidades excitadas e produzidas artificialmente. “Posto isto, podemos começar a formar uma concepção de cultura, uma ideia que, antes de mais nada, é um protesto. Um protesto contra o insano constrangimento imposto à ideia de cultura, ao reduzi-la a uma espécie de panteão inconcebível e ao provocar assim uma idolatria em tudo idêntica ao culto das imagens nas religiões que relegam os seus deuses para panteões. Um protesto contra uma concepção de cultura distinta da vida, como se de um lado estivesse a cultura e do outro a vida, como se a verdadeira cultura não fosse um meio requintado de compreender e de exercer a vida” (Artaud). Diante deste cerco impiedoso, destas práticas ridículas, desta competição que dá cabo de todo o sentido da graça, da elegância de quem sempre preferiu escapar de regimes concentracionários, de bulhas intermináveis, esperava-se daqueles que vivem do tráfico das obras culturais um sinal de diferença, uma forma de demarcação. Pois como notou Vitor Silva Tavares, “se a montante e a jusante do fabrico és tu ‘o mercado’, como te fazem, então está na tua mão lixá-lo – ou, em mais fina terminologia sociológica – subvertê-lo. Escolhe e torna a escolher, encontra esconsos, busca luminescências (quase) clandestinas, contribui, pela inércia, para a cubicagem dos sarcófagos de invendidos, nega a lógica vampiresca dos conglomerados editoriais. Não embarques quando ouves ou lês que eles garantem empregos e salários e difundem a língua e a cultura e o comércio externo e o equilíbrio da balança de pagamentos e o aumento do produto interno bruto… deste embrutecimento programado. Mete na cabeça que a legião de accionistas do ‘sector’ não é de fiar.” Tudo isto serve de balanço para uma conversa em que falámos dos sinais da capitulação deste sector ao mercado, uma rendição eufórica que a cada ano é celebrada nessa liturgia sacrificial que é a Feira do Livro de Lisboa. Para nos acompanhar e impelir nesta reflexão e crítica da forma como o capital se vai espacializando, e subjugando as nossas cidades, “suprimindo as qualidades específicas inerentes aos lugares, os quais já só subsistem em estado de poeiras físicas, como vivências subjectivas e relativas, sem valor nem consistência” (Bruce Bégout), contámos neste episódio com os bons ofícios de Luís Mendes, geógrafo que se tem empenhado particularmente em procurar soluções para a crise da habitação e para a progressiva financeirização das cidades.
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