Alguém faz algo que ninguém compreende, um acto que excede a experiência de todos. Esse acto não dura nada, mas tem a qualidade pura da vida, e, não sendo narrativo, é a única coisa que faz sentido narrar. Hoje abundam os narradores, aranhas senis balouçando nas suas teias de tinta, contando uma e outra vez as mesmas histórias. Falam muito das coisas que fizeram, relatam-nos tudo o que os motiva e aquilo que ainda esperam fazer. Nem precisam de se escutar uns aos outros, o seu número apenas exprime uma situação sem saída, uma multiplicação que impõe essa fábrica de relatos na qual vivemos encerrados como num cárcere. O que importa é narrar, mas pouco importa se a história é capaz de instruir ou animar alguém ao ponto de orientar a sua acção. A crise da literatura portuguesa coincide com o ânimo desses funcionários da reprodução do mesmo, que constróem frívolos enredos nos quais não pesam nem conhecimento nem a ânsia exploratória, e é por serem tão crentes na sobrevivência do seu talento que recusam todos os elementos efémeros, sendo incapazes de se actualizarem catando aqueles elementos radiantes de entre a malha de detritos. "O homem moderno volta para casa à noitinha extenuado por uma mixórdia de eventos — divertidos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes —, entretanto nenhum deles se tornou experiência”, diz-nos Agamben. "Ou seja, o ser humano está repleto de eventos ao longo do dia, mas nenhum se torna experiência. É como se a banalidade da vida virtual não fosse o suficiente para que os dias contassem como bem vividos…" Todos falam de obsessões, mas ninguém é capaz de mergulhar nelas e extrair alguma visão minimamente inspiradora. Estamos a desaparecer engolidos pelo olhar destas pessoas cansadas das infinitas complicações da vida quotidiana, "e para as quais a finalidade da vida se descortina apenas como ponto de fuga longínquo numa infindável perspectiva de meios", adianta Benjamin, esse ensaísta alemão que tem servido de esteio a todo o tipo de derivas. Mas para lá desse plano geral em que todos participam, dessas ilusões para as quais todos contribuem, há que sinalizar como sempre foi suficiente um acontecimento inesperado para nos alterar drasticamente a vida. Infelizmente, na vida da maioria dos jovens a única metamorfose que vemos ocorrer leva-nos a espiá-los apenas até ao momento em que aquela vítima, cansada da sua própria agitação moral, cede e dá os primeiros passos de verdugo. Talvez a ninguém apeteça falar por sentir que mais tarde ou mais cedo acabará por se revelar perante si mesmo, desfazendo a sua própria fantasia. Com a mesma inclinação de Unamuno para nos sentirmos intrigados perante os gestos e as manifestações da nossa juventude intelectual, podemos assinalar que talvez não haja outra forma de estar empenhado no seu tempo que não passe por estar investido nos sinais do assalto que deles esperamos ao ideal. E se tantos dão sinais de uma postura desdenhosa diante daqueles que podem ou não reclamar o vigor de uma acção regenaradora, uma outra atitude era a do grande autor espanhol, que preferia exprimir com uma certa dureza o seu afecto, chegando a demonstrar um gosto por chicotear aqueles de quem esperava algo de transformador. "Para os irredimíveis, para os que se limitam a arrastar-se por uma vida sombria ou uma morte ainda mais sombria, para esses há apenas a apóstrofe florentina: não falemos deles, olhemos e passemos adiante." Unamuno dedicou várias das suas intervenções a confrontar a tendência crescente dos jovens para se exaltarem de uma forma ou de outra, fosse directamente fosse através de elogios mútuos, manifestando um orgulho insuportável sem muitas vezes terem a menor consciência da tradição que procuravam abalar. "Há muito orgulho fingido nos nossos jovens, tal como há pura ficção na hediondez daquele animalzinho inocente a que os naturalistas chamam Moloch horridus, o inofensivo lagarto da Austrália, que, quando é molestado, assume o aspecto de um animal assustador e nocivo, eriçando de medo não sei que espécie de cauda ou gola sobre o pescoço para se fazer maior do que é." O que a seguir nos diz sobre a juventude espanhola do seu tempo pode ser transposto sem grande esforço de adaptação para retratar a nossa juventude intelectual: "A maior parte dos males de que sofre a nossa juventude tem origem na precariedade da nossa vida cultural. A sua fantasia engana-os mais do que nunca, mostrando-lhes o pão sob a forma de glória. Já o disse muitas vezes, e repito-o, e não será a última vez: entre nós, a ganância afoga a ambição. Somos um povo de mendigos arrogantes, que diz 'Deus lhe pague!' a quem nos dá esmola e 'Que pulha' a quem não dá. Um jovem chega a Madrid à procura de uma boa posição, e logo se lança em busca de um tacho, para ter uma vida o mais cómoda possível. E os que se julgam mais independentes são geralmente os que se lançam com maior afinco neste esforço de se fazerem funcionários de uma reputada instituição qualquer. O mais triste nisto tudo é que os jovens estão dispersos e não compreendem que, se ao menos se se unissem, deixariam de ter de obter cunhas e favores, e que marchando numa falange compacta isso lhes daria muito mais força." Na própria literatura vingou o regime da cunha, demasiados pastiches, arranjinhos, esquemas, demasiadas paródias insossas... Antes seria de preferir plágios directos, roubos descarados, desde que se guiassem por essas paixões que são capazes de nos guiar pela vida fora. Falando dos seus velhos amigos, o alter ego de Ricardo Piglia notava que à medida que foram envelhecendo manifestavam a aspiração de se transformarem naquilo que antes odiavam, e que tudo o que antes lhes gerava repulsa agora contava com a sua admiração... "Já que não podemos mudar nada, pensam, mudemos de opinião... E com isso vemos bibliotecas inteiras serem enterradas, e, nos pátios, pilhas de livros incineradas ou vendidas a pataco, mas falta ainda notar que, por mais difícil que resulte para alguns desfazerem-se do conteúdo das suas estantes, a traição mais perfeita está no modo como estes passam a ser lidos, com uma espécie de nostalgia piedosa, como quem se enternece com a sua juventude ao mesmo tempo que deplora as paixões que a animavam. Esses velhos amigos, "leitores dogmáticos, literais, dizem agora coisas distintas com a mesma sabedoria pretensiosa de antes". Antes tinham ao menos a desculpa de acreditarem em si mesmos, ao passo que agora acreditam apenas nos seus álibis e desculpas. Neste episódio, a Maria Brás Ferreira aceitou o convite sem fazer qualquer fita, sem negociar os termos, simplesmente deixou-se levar, e até pôs o telemóvel em modo avião, cortando qualquer sinal de geolocalização. Mantivemo-la refém durante cinco horas. E ao contrário do largarto australiano, dispensou qualquer cauda ou gola e deixou claro que estava disponível para ir dançar descalça no coreto, fosse este nalguma praça da nossa província fosse no coração das trevas.